A cronobiologia afirma que a maioria dos ciclos biológicos humanos se dá num período de 25,2 horas – daí a expressão ritmo circadiano, cerca de um dia.
Esses ritmos são estudados pela cronobiologia, área das ciências médicas e biológicas que foi reconhecida oficialmente em 1960. Mas, na verdade, o primeiro cientista a suspeitar da existência de autênticos relógios biológicos foi um astrônomo – o francês Jean-Jacques De Mairan, que, em 1729, observou que uma planta – a mimosa-sensitiva – ao lado do seu telescópio abria conforme a luminosidade. Intrigado, levou o vaso para o porão, dentro de um baú. De Mairan verificou que mesmo nessas condições de total escuridão a planta continuava a se movimentar como se acompanhasse o dia e a noite. O astrônomo relatou a experiência à Academia de Ciências de Paris, que a tratou – e o seu autor – com soberano desprezo.
Afinal, para os cientistas da época os ritmos biológicos apenas deviam refletir as mudanças ambientais e não, como se acredita hoje, se manifestar em sincronia com elas. “Os ritmos são herdados e os fatores ambientais, a que chamamos de sincronizadores, servem apenas para ajustar os ponteiros dos relógios biológicos”, esclarece o neurofisiologista José Cipolla-Neto, um dos fundadores do grupo multidisciplinar que estuda o assunto há oito anos na Universidade de São Paulo. A cronobiologia afirma que a maioria dos ciclos biológicos humanos se dá num período de 25,2 horas – daí a expressão ritmo circadiano, cerca de um dia.
Existem, é claro, diferenças de pessoa para pessoa: a “zero hora” de uma não é necessariamente a de outra. Os matutinos acordam e dormem cedo, enquanto os vespertinos preferem ir para cama por volta das 3 da madrugada, para só acordar perto do meio-dia. Isso é muito significativo, pois os ciclos de todas as funções são arrastados pelo ciclo do sono. Em qualquer caso, os estímulos externos servem apenas para sincronizar os ritmos internos com o ambiente, pois o organismo não se comporta à noite como de dia, importando pouco o fato de se estar dormindo ou acordado. “Nos seres humanos há um sincronizador muito particular: as relações sociais”, ressalta Cipolla.
A luz, porém, é de longe o sincronizador mais poderoso para a maioria dos seres vivos. Impressionadas pela luminosidade, as células da retina disparam através dos nervos óticos uma mensagem elétrica que alcança o hipotálamo, na base do cérebro. Além de comandar as glândulas do organismo, o hipotálamo possui um pequeno núcleo onde se localiza o relógio biológico, considerado essencial à manutenção dos ritmos. A luminosidade do dia impede de trabalhar a glândula pineal, localizada na área dorsal do cérebro e comandada pelo hipotálamo. Desbloqueada à noite – pois a luz artificial é muito fraca para produzir o mesmo efeito -, ela começa a liberar um hormônio, a melatonina, que, além de induzir o sono, age como uma espécie de mestre-sala para todos os ritmos biológicos.
“É como se o organismo compreendesse que existe um antes e um depois da melatonina”, tenta definir Cipolla. A melatonina, ainda por cima, estimula certas células imunológicas que combatem tumores – estes, descobriu-se recentemente, se desenvolvem mais depressa durante o dia. Algumas horas após o início da produção de melatonina, outra glândula – a hipófise – começa a segregar o chamado hormônio do crescimento, cujo pico no organismo se dá por volta das 3 da madrugada. Estes são responsáveis, por exemplo, pela renovação das células, um processo que se repete noite após noite, ritmicamente. Outro hormônio, o cortisol, é produzido pelas glândulas supra-renais pouco antes de a pessoa despertar.
Faz sentido, porque o cortisol prepara o organismo para a atividade; é por isso que uma sessão de ginástica de manhã cansa menos do que à noite, quando aquele hormônio não é produzido. Interrompida a produção da melatonina pela luz do dia, outros hormônios passam a ser sintetizados, como os da glândula tireóide logo de manhã. O sobe-desce dos níveis hormonais constitui os ritmos biológicos das pessoas. É o caso da preguiça que muita gente experimenta entre as 13 e 15 horas e que nada tem a ver com o fato de se ter ingerido ou não um farto almoço. Tem a ver, isso sim, com a maré baixa da atividade nas áreas cerebrais responsáveis pela atenção. A fome tampouco aparece por acaso no meio dia e à noite: é nesses períodos que o aparelho digestivo já está preparado, pois produziu enzimas.
Daí por que se recomenda manter o horário das refeições: quando isso não acontece, o alimento encontra o estômago despreparado e, por mais leve que seja, acarreta má digestão. Além disso, na falta do que digerir, as enzimas produzidas na hora marcada, pelo relógio biológico atacam o próprio aparelho digestivo, dando aquela conhecida sensação de ardor e, pior ainda, formando as dolorosas úlceras.
Tudo é ritmo e nem a dor escapa disso – embora inevitável, ela varia de intensidade. Um chute na canela logo ao amanhecer pode ser mais suportável do que um chute igual à tarde, quando as células nervosas estão mais ativas. Já a madrugada é o pior momento para se ter uma sensação dolorosa. Aliás, nesse mesmo período dá-se uma queda no sistema imunológico e os processos inflamatórios tendem a se acentuar enquanto se dorme – quem nunca teve a impressão de dormir com a garganta irritada e acordar mal conseguindo engolir? Não é à toa que as piores dores de dente – que beiram o insuportável por geralmente estar relacionadas à inflamação dos nervos – costumam pegar a vítima de pijama.
Os ciclos circadianos, porém, não são os únicos a governar os ritmos humanos. A menstruação é um exemplo típico de ciclo mensal. Existem ainda os ciclos circanuais, que duram, como o nome indica, cerca de um ano. Pesquisas mostram que em qualquer parte do mundo a taxa de natalidade tende a ser maior na primavera. Isso indica que até na gélida Finlândia – e não apenas em países ensolarados como o Brasil – os amores de verão costumam ser irresistíveis. Os cientistas suspeitam que, assim como outras espécies costumam se acasalar em determinada estação para que as crias também nasçam em meses mais adequados à sobrevivência, por algum motivo desconhecido, ao longo da evolução, os homens escolheram a primavera como a época ideal para o nascimento dos filhos. Por isso, cerca de nove meses antes – ou seja, no verão -, aumentariam os níveis de hormônios sexuais que despertam o desejo.
Não seria pela temperatura que o organismo percebe a mudança de estações, e sim pela quantidade de luz, que varia conforme as estações. A cronobiologia responsabiliza a diminuição da quantidade de luz, típica do inverno, especialmente no hemisfério norte, pelo aumento de surtos de depressão nos meses frios. Por isso, em países europeus e nos Estados Unidos já se trata a depressão com fototerapia, em que estímulos de luz servem para acertar os ponteiros do relógio biológico. O paciente é isolado num ambiente desprovido de qualquer sugestão da hora do dia, como uma janela, por exemplo.
Os médicos então medem alguns parâmetros fundamentais como o hormônio cortisol, que deve ser produzido nas primeiras horas da manhã, e a temperatura, que deve atingir seu ponto máximo às 18 horas. Assim, são determinadas as características dos ritmos biológicos naturais. Essas características dizem como está funcionando o relógio biológico – se está atrasado ou adiantado. Quando o estímulo de lâmpadas de 10 mil lux (unidade de luminosidade) é dado na passagem do dia para a noite, o relógio biológico atrasa, pois o organismo reage como se o dia tivesse continuado. Já quando o estímulo é aplicado na passagem da noite para o dia, o relógio se adianta, como se o dia tivesse chegado mais cedo.
Os resultados do tratamento – ainda não disponível no Brasil – podem durar pelo menos um mês; depois é preciso repeti-lo. A fototerapia também é usada para combater o chamado jet lag, expressão inglesa que designa a sensação de mal-estar que sofrem os passageiros de vôos de longa duração. Na realidade, a sensação é provocada pela passagem abrupta de um fuso horário para outro. A velocidade cria um descompasso entre o que ocorre no organismo e o mundo exterior. O relógio biológico fica por assim dizer desregulado em relação à rotina do ambiente.
Como o ciclo humano tem mais de 24 horas – 25,2 horas, como já se viu -, é mais fácil atrasar os ritmos do organismo do que adiantá-los. Ou seja, quem voa no sentido leste-oeste sofre menos, porque no leste é mais tarde: quando é meio-dia em Brasília, por exemplo, os ponteiros de Paris já marcam 16 horas. Assim, um viajante da França se adapta ao horário brasileiro bem mais depressa do que o brasileiro desembarcando na França – três vezes mais depressa, calculam os pesquisadores. Uma das áreas de vanguarda da cronobiologia é o estudo do ajustamento entre os vários ciclos biológicos.
Após estagiar dois anos com o médico americano Franz Halberg – o inventor do termo “ciclos circadianos”-, o biólogo Nélson Marques, da USP, pesquisa a medicina dos ciclos de aproximadamente uma semana. Procura-se também saber como os pequenos ciclos de poucas horas formam os ciclos circadianos e estes formam por etapas sucessivas os circanuais. Essa cadeia harmônica parece romper-se no idoso, que dorme poucas horas à noite e tende a cochilar várias vezes ao dia. “Alguns acreditam que as conexões entre os ciclos se desfazem com o tempo”, informa Marques. “Mas existem os que acham que o próprio envelhecimento seria conseqüência e não causa desse desajuste”.
Em todo caso, é pela falta de sincronia que os cronobiologistas explicam as doenças. O biomédico Luiz Menna-Barreto, do grupo paulista de cronobiologistas, exemplifica com o caso de trabalhadores noturnos, cujos ritmos não se invertem, e, conseqüentemente, poderiam ter uma estimativa de vida quase 10 por cento menor do que os outros”. Um dos objetivos da cronobiologia, aliás, é aplicar o conhecimento dos ritmos ao estudo do desempenho humano, orientando as empresas no sentido de aproveitar os picos de disposição dos funcionários e, em compensação, admitir menor produção nos horários em que os ritmos caem.
Tudo isso – os cientistas fazem questão de advertir – nada tem a ver com os velhos biorritmos em moda na década de 70, invenção de um americano que calculava três ciclos – de 23, 29 e 33 dias -, correspondentes ao desempenho físico, emocional e intelectual, respectivamente. Tais ciclos partiam da data de nascimento de cada qual e os pontos de intersecção eram considerados dias críticos, sujeitos a desgraças de todo tipo. Tanto os cronobiologistas rejeitam essa idéia que até aboliram o termo “biorritmo” do seu jargão para evitar confusões.
Biorritmo é um caso típico do que se convencionou chamar pseudociência. Em primeiro lugar, nenhum ritmo poderia ser calculado a partir do nascimento, porque o feto já possui alguns ritmos próprios, como o dos batimentos cardíacos. Além disso, a duração de tais ciclos foi estabelecida a partir de ocultismos, como a numerologia. Enfim, nenhum teste hormonal ou de desempenho físico comprovou até hoje as alegações da teoria do biorritmo.
A área talvez mais quente de atuação da cronobiologia se refere ao uso de medicamentos. “Descobriu-se que as drogas têm efeitos diferentes conforme o momento do dia”, conta o médico José Cipolla-Neto. “Não só uma droga é mais eficaz em certas horas como também em outras pode gerar efeitos colaterais mais intensos”. Assim, em vez de acreditar que o ideal seria manter uma droga em níveis constantes na corrente sangüínea até o final do tratamento, baseados em pesquisas os cronobiologistas apostam na teoria da dose certa no momento certo: as anestesias locais, por exemplo, durariam o dobro do tempo se aplicadas entre 13 e 15 horas, quando deveriam ser marcadas as cirurgias mais longas. A cronobiologia é recente demais para que todas as suas descobertas sejam aceitas sem discussão. Mas parece no mínimo sensato afirmar, como ela faz, que também a saúde é uma questão de manter o ritmo – os altos e os baixos da atividade do organismo.
Por Lúcia Helena de Oliveira
Para saber mais:
(SUPER número 2, ano 10)
Até há alguns anos, os cronobiologistas costumavam citar certas “moscas arrítmicas”- insetos que pareciam não obedecer a ciclos biológicos. Mais tarde ficou provado que, na realidade, essas moscas tinham ciclos tão breves que podiam se repetir até mais de vinte vezes ao dia. Caía de vez, então, a hipótese de que algum ser vivo poderia não ter ritmos. Mas o fato de todos viverem ritmicamente não os torna semelhantes, muito ao contrário. O relógio biológico, de acordo com os cientistas, é uma espécie de carteira de identidade das espécies que combina tantas informações a ponto de tornar seu portador um indivíduo praticamente único.
Os ritmos da natureza variam muito: há insetos que batem as asas vinte vezes por segundo, como certas borboletas, e outros que as batem setecentas vezes no mesmo período, como a mosca-da-fruta; enquanto o coração do hipopótamo dá por volta de 20 batimentos por minuto, em passarinhos chegam a ser mil os batimentos num intervalo idêntico. A única semelhança entre as espécies acaba sendo o sincronizador, conforme o ambiente em que evoluíram. Assim, caranguejos e algas, por exemplo, guiam seus ritmos principalmente pelas marés. Já para a maioria dos insetos e para todos os répteis, que não desenvolveram suficientemente o sentido da visão, é a temperatura ambiental o que mais regula seus ciclos. Em mamíferos e aves, porém, é a luz que acerta o relógio biológico.
Durante dois meses e meio, a bióloga Mírian Marques passou pelo menos oito horas por dia numa pequena sala iluminada por uma única lâmpada vermelha do Museu de Zoologia de São Paulo. Ali, um microscópio eletrônico ampliava-lhe a imagem de insetos Collembola – uma classe primitiva, sem asa, que não mede mais de 1,5 milímetro e vive sob a terra. A luz vermelha servia para que Mírian pudesse observá-los sem que estes recebessem o estímulo luminoso. “Livres assim de um sincronizador que poderia alterar-lhes os ritmos, verifiquei que eles têm ciclos biológicos de cerca de uma semana, pois trocam a cutícula (espécie de esqueleto externo) a cada três dias e meio e põem ovos a cada sete”, explica a bióloga, para quem essa constatação poderá ser importante para a compreensão dos ciclos biológicos humanos.
De fato, há algum tempo se quer provar que existem também ciclos de sete dias – certas células do sangue humano, por exemplo, se multiplicam nesse intervalo. Seriam, por sinal, os únicos sem um correspondente no ambiente. Por isso, alguns cronobiologistas mais cautelosos afirmam que eles poderiam ter sido desencadeados por influência da organização social humana, que dividiu o tempo em semanas de sete dias. “Outra corrente supõe que na realidade a semana teria sete dias porque esse número respeitaria alguns ciclos biológicos”, contrapõe Mírian. “Tanto assim que algumas civilizações antigas, que experimentaram semanas de cinco, dez ou doze dias, acabaram se fixando em sete.”
Fonte: [1]