Mulheres, Curandeiras e Enfermeiras na Perspectiva de Gênero e de Raça

21 de junho de 2023 por filipesoaresImprimir Imprimir

O Que Perde a Enfermagem Com a Reedição de Discursos Discriminatórios?


A enfermagem no Brasil teve como principal influência o modelo de formação de Florence Nightingale. O modelo é marcado pela divisão sexual do trabalho em relação à medicina, preponderando a subordinação ao médico, representada por tecnicismo, cientificismo e ideais morais sexistas de delicadeza, aristocracia e nobreza. O ideal nightingaleano teve como proposta inicial a moralização da profissão, introduzindo mulheres de classes altas na enfermagem. A disciplina e o preconceito são os quesitos para se adequar às exigências do padrão burguês, sexista e racista. O padrão exigido para exercer a profissão era de mulheres com boa aparência, idade entre 20 e 40 anos, que demonstrassem docilidade, bondade, disciplina, soubessem ler e escrever, ou seja, era uma profissão ilusoriamente idealizada para grupos da elite brasileira no início do século XX.

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Cabe-nos questionar: se a enfermagem moderna foi forjada para a elite brasileira, quem cuidava da população de baixa renda? A enfermagem só começou a existir a partir do modelo criado por Florence Nightingale? Se assim o for, o que dizer das mulheres que realizavam os cuidados à saúde antes da profissionalização positivista da enfermagem? Certamente, o saber popular utilizava conhecimento fitoterápico para garantir a saúde de todas as classes da população, com base no curandeirismo, tendo seu valor amplamente reconhecido e validado. Esse sistema de cura aborda o corpo sob perspectiva integral, compreendido como um campo de energia. Contraditoriamente, a despeito de sua discriminação pelo saber científico, as atuais propostas de mudança do modelo de atenção biomédico reivindicam justo o cuidado integral, praticado pelo curandeirismo há séculos.
No Brasil, o saber tradicional tem como origem os povos africanos e indígenas, exercido principalmente pelas mulheres curandeiras, parteiras e benzedeiras. Elas praticavam enfermagem, abortos, davam conselhos sobre enfermidades, faziam partos e tinham lugar de destaque devido à proximidade e à escuta ativa dos problemas de saúde da população. A despeito de sua relevância social, o curandeirismo tem pouco lugar de destaque na história oficial da enfermagem, herdeira de rígidos padrões vitorianos, elitistas e racistas incorporados à profissão. Além do pouco destaque, o curandeirismo, prática em que as mulheres sempre tiveram grande poder sobre o corpo e a cura, foi socialmente discriminado pelo discurso biomédico na enfermagem, restrita ao modelo nightingaleano.
O resultado disso é uma assistência à saúde desenvolvida e ensinada de forma mecânica, instrumentalizada, cientificizada, sexista, seguindo normas e prescrições rígidos, com práticas de saúde hierárquicas, sob o domínio do profissional médico, homem. Além disso, as relações de cuidado e ensino estão encobertas de hostilidades, tensões e indiferença, além de caracterizar como inferiores as habilidades manuais e o saber acumulado sobre o corpo e a saúde das mulheres. Com isso, toda a autonomia e o poder feminino que o curandeirismo poderia ocasionar na enfermagem foram marginalizados. Os processos educacionais se tornam pouco reflexivos sobre as questões de gênero que subjazem os discursos oficiais, em geral, restritos ao mito da “Dama da Lâmpada”, reeditando desigualdades que nos violentam.
Outra questão é o fato da exclusão na profissão de todos os que não faziam parte do padrão imposto, isto é, o modelo hegemônico sexista e racista – como as curandeiras, parteiras e benzedeiras, em sua maioria negras – centrado nos ideais de uma mulher branca, inglesa e elitizada. As contradições e desigualdades sociais desse discurso são representadas atualmente no quantitativo de profissionais da equipe de enfermagem. A maioria das enfermeiras são brancas (57,9%), enquanto a maioria das técnicas e auxiliares de enfermagem são negras (57,4%). Ressalte-se que as técnicas e auxiliares de enfermagem em alguns setores públicos do Brasil (4,4%) recebem menos de 680 reais e 1,8% trabalham mais de 80 horas semanais. Entretanto, a situação não é melhor para as enfermeiras, que recebem em geral (37,1%) entre 2 e 4 salários mínimos, com situações de subempregos e desempregos. A fragilidade política da profissão se verifica na luta pelo piso salarial da profissão que não avança, a despeito dos 50 anos de luta.
Do exposto, a partir das questões de gênero, classe e raça presentes na profissão, esta pesquisa pretende problematizar a história oficial da enfermagem, questionando as versões invisibilizadas da contribuição das mulheres nas práticas do cuidar, especialmente as curandeiras, para a saúde e enfermagem. O estudo tem a seguinte questão norteadora: Quais referências teóricas viabilizam a análise das abordagens do curandeirismo na enfermagem sob a perspectiva de gênero e raça, nos discursos oficiais da profissão?
Como objetivos, têm-se: criticar a história oficial da enfermagem no Brasil a partir dos estudos de gênero e raça; elaborar um quadro referencial com questões norteadoras para análise dos discursos estereotipados, elitistas, sexistas e racistas sobre o curandeirismo na profissão.
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