A Saúde Persecutória os Limites da Responsabilidade

23 de janeiro de 2023 por filipesoaresImprimir Imprimir

Discute a “complexa tarefa de avaliar a real efetividade das propostas individualistas hegemônicas de promoção em saúde centradas em evidências científicas” e as consequências de uma concepção de promoção e prevenção em saúde.


Este estudo provém de um trabalho em colaboração iniciado em 2000, através de trocas de correspondência eletrônica sobre temas profissionais entre os autores. As afinidades foram aos poucos se definindo. Ambos pertencem à mesma geração, são investigadores em saúde pública, com incursões no terreno da editoria de revistas científicas e com uma postura crítica bem definida no campo sanitário.

A Saúde Persecutória os Limites da Responsabilidade

Os contatos desembocaram em uma proposta de trabalho de publicar artigos e um livro conjuntamente. Diante de um gentil convite e após usuais peripécias e resolução das inefáveis e múltiplas exigências burocráticas, Luis David Castiel se deslocou para a Espanha para um estágio pós-doutoral, com apoio da Capes, no período 2004-2005.

Justamente no decorrer da segunda metade deste período ocorreu o aniversário do quarto centenário de uma das obras-primas da literatura universal, Don Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes. Várias comemorações foram realizadas na Espanha. Coincidência ou não, alguns aspectos desenvolvidos na presente obra podem induzir o leitor a interpretações que sugiram supostas afinidades com as ‘visões’ de mundo delirantes do Cavaleiro da Triste Figura. Os autores esclarecem que, caso esta impressão se apresente, tal se passou inadvertidamente às intenções por ocasião da elaboração do livro – mera coincidência…

Mas, diante do resultado, uma vez levada em conta tal possibilidade, acreditamos que ela deva ser assumida, sobretudo sob um ponto de vista crítico-utópico, por razões que, esperamos, deverão ser esclarecidas ao longo do texto.

A primeira parte se inicia com as anotações que situam a perspectiva crítica adotada ao longo do texto e definem o objeto de estudo como próprio aos tempos incertos e inseguros que marcam nossa época hipertecnológica – quase como se estivéssemos vivendo alguma história de ficção científica distópica que poderia ter sido escrito por alguém como Philip K. Dick. Aliás, esta é a ideia desenvolvida na primeira parte: justamente aproveitar-se das ideias contidas no conto “The minority report” (1991) como um exacerbado molde preventivo persecutório que parece constituir-se, apesar do exagero ficcional, no espírito que se manifesta em nossa época em vários domínios, inclusive no campo da promoção da saúde.

Na segunda parte, os autores enfocam mais especificamente duas matrizes, uma conceitual e a outra disciplinar – estilo de vida e genômica – como fontes de atribuição de responsabilidade no âmbito da promoção da saúde. Primeiramente, a partir da noção de sensibilidade, empregada em epidemiologia, sugere-se um dispositivo metafórico – a ‘sensibilidade epistemológica’ – para, em nome de uma suposta ‘verificação’ da adequação de um conceito/noção/categoria/disciplina, descrever ou explicar aquilo que se pretende conhecer, problematizar a imparcialidade de suas propostas. Isto se aplica ao estudo da noção de ‘estilo de vida’.

Nos demais capítulos, faz-se uma breve incursão em vários aspectos da noção de estilo de vida saudável, na internet e na academia. E também aborda-se a importante distinção das respectivas dimensões individual e coletiva vinculadas à noção. As relações entre genômica, saúde pública e epidemiologia são discutidas, sobretudo sob a ênfase das intrincadas interações entre genes e comportamentos e da aproximação entre epidemiologia e genômica, desembocando numa tentativa de teorizar acerca dos riscos de uma progressiva genomização epidemiológica.

No desfecho, propõe-se, entre as muitas tarefas que se apresentam em saúde pública, uma que não deve ser negligenciada em meio às indiscutíveis prioridades de intervenção para evitar ameaças à sobrevivência humana e a seu bem-estar. Esta seria a de questionar, ainda que nos limites da responsabilidade, o alcance de concepções e teorias que nos impeçam de cogitar em outras perspectivas capazes de superar entendimentos teóricos precários das sociedades e dos indivíduos e intervenções insatisfatórias dos processos saúde/doença/cuidado/prevenção.

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