No Dia da Mulher, nada a comemorar
por Tatiana Merlino — publicado 08/03/2017 00h25, última modificação 07/03/2017 10h16
Fim de tarde de sábado 25 de fevereiro. A garota de 13 anos caminha sozinha pelo Centro de São Paulo, após se perder dos amigos durante um bloco de Carnaval. Dois homens adultos a atacam. É segurada com força, blusa rasgada. Ela consegue se defender e fugir.
Madrugada de 27 de fevereiro, também Carnaval, Elisabeth Henschel, de 23 anos, toma cerveja num bar com o namorado na região central do Rio de Janeiro quando é apalpada nas nádegas por um homem. Ao interpelá-lo, leva dois socos no rosto. “Quando abri os olhos, só vi sangue”, relembra. “Pelo fato de estarmos com uma roupa mais curta, os homens acham que os estamos provocando, que têm livre acesso ao nosso corpo”, diz a jovem, que usava um maiô com a estampa “Feminist” (feminista, em inglês).
Henschel foi uma das mais de 2 mil mulheres agredidas durante o Carnaval no Rio. Balanço divulgado pela PM revelou que ao menos uma mulher foi agredida a cada quatro minutos no estado. Durante os cinco dias de festa, a polícia atendeu 15.943 solicitações. Dessas, 2.154 foram pedidos de socorro sobre violência contra a mulher.
A tentativa de estupro em São Paulo e o assédio no Rio de Janeiro ocorreram em meio a campanhas realizadas no Carnaval deste ano para combater o machismo, o assédio e a violência sexual, que apresentam números alarmantes no País. Uma delas foi a campanha Carnaval Sem Assédio, com o mote “Uma Mina Ajuda a Outra”, promovida pela revista AzMina, também responsável pela marchinha Se Você Quiser.
A violência contra o sexo feminino teve destaque no relatório da Anistia Internacional sobre violações de direitos humanos no Brasil em 2016, lançado no fim de fevereiro, e não justifica qualquer tipo de festejos no Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março.
“Uma série de estudos durante o ano mostrou que a violência letal contra mulheres aumentou 24% durante a década anterior e confirmou que o Brasil é um dos piores países da América Latina para quem nasce menina, em especial devido aos níveis extremamente altos de violência de gênero e gravidez na adolescência, além das baixas taxas de conclusão da educação secundária”, relata o documento.
Os estupros coletivos, indica a Anistia, “de uma menina em 21 de maio e de uma mulher em 17 de outubro no estado do Rio de Janeiro foram notícia no País todo, confirmando a incapacidade do Estado para respeitar, proteger e cumprir os direitos humanos de mulheres e crianças”.
Em 2016, lembra o relatório, completaram-se dez anos desde a entrada em vigor da Lei Maria da Penha, contra a violência doméstica. O texto destaca: “O governo falhou em implementar a lei com rigor, e a violência doméstica e a impunidade continuam amplamente difundidas”.
Medidas do governo Michel Temer, entre elas a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, e a redução dos recursos e programas dedicados aos direitos das mulheres e meninas foram igualmente definidos como preocupantes pela Anistia Internacional.
Segundo Marina Ganzarolli, advogada e integrante da Rede Feminista de Juristas, a Lei Maria da Penha é avançada. “Hoje temos mais arcabouço institucional, mas ainda há muita dificuldade de aplicar a lei”. Entre os obstáculos, enumera, está a dificuldade de comprovar a violência física para os operadores do Direito. “Já vi caso de mulher com três costelas quebradas, toda roxa e o juiz considerar que ela sofreu lesão corporal leve.”
Maria da Penha Fernandes, cujo nome virou sinônimo da luta contra a violência doméstica, lista como desafios para a implementação da lei que leva seu nome a falta de delegacias da mulher em alguns municípios e o machismo reinante no âmbito da Justiça. “É lamentável, mas há cidades onde a lei não é aplicada por falta de compromisso de gestores públicos.”
Vítima de violência doméstica durante 23 anos de casamento, ela considera que a Lei do Feminicídio, sancionada em março de 2015, fortalece a Lei Maria da Penha, mas se preocupa com os números alarmantes de assassinatos de mulheres. “A soltura do goleiro Bruno, por exemplo, demonstra um despreparo do juiz.” Bruno havia sido condenado a 22 anos e três meses de prisão pelo assassinato e ocultação do cadáver da ex-namorada Eliza Samudio.
Consta que, a cada hora e meia, uma mulher é assassinada por um homem, em um total de 13 feminicídios por dia. A taxa é de 4,8 para 100 mil mulheres, a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde.
O Mapa da Violência 2015 aponta que, dos 4.762 assassinatos de mulheres registrados em 2013 no Brasil, 50,3% foram cometidos por familiares. Em 33,2% desses casos, o crime foi praticado pelo parceiro ou ex. O mapa mostra ainda que a taxa de assassinatos de mulheres negras aumentou 54% em dez anos, de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013.
“Temos de pensar o motivo de chegarmos a essa situação e também por que ela perdura”, diz Ganzarolli. “A Justiça não acolhe as mulheres, o sistema policial não está preparado para lidar com a desigualdade de gênero e trata as mulheres como objeto, propriedade.”
No começo, ele era controlador, tinha ataques de ciúme. Puxava o cabelo, segurava forte no braço. Depois vieram socos e tapas. Ameaças de morte. Tentativas de estrangulamento. Ela foi arrastada pelo corredor do prédio. Engravidou. Com cinco meses de gestação, ele a jogou no chão e sentou em cima de sua barriga. Numa das agressões, ela levou um chute na mão que causou fratura óssea.
“Poderia estar morta”, recorda a jornalista Camila Caringe, 30 anos. Durante três anos, a violência cresceu em escala. “No começo conseguia distinguir os dispositivos que desencadeavam a violência. Como eu sabia que ele era ciumento, se me via conversando com alguém dava chilique. Depois me batia por qualquer coisa, porque o gás tinha acabado, porque eu estava digitando e o barulho das teclas o incomodava.”
O caminho para Caringe encontrar amparo em órgãos públicos foi longo e difícil. Na Delegacia da Mulher não aceitaram sua queixa por ela não estar machucada no momento, “mesmo que tivesse uma ameaça por escrito”. Ela ouviu: “Volta pra casa, pense bem”. Dez dias depois, a mão precisaria ser engessada por conta dos chutes.
As violências e ameaças só cessaram quando finalmente a jornalista conseguiu uma medida protetiva, que levou um mês para ser concedida. Para ela, a Maria da Penha é essencial. “Os dispositivos da legislação são fundamentais, como a medida protetiva. Podemos dizer que a lei ‘já pegou’, mas ainda temos muito que avançar, sobretudo do ponto de vista cultural.”
O feminicídio e a violência doméstica, acredita Ganzarolli, são a expressão máxima da desigualdade de poder que existe entre homens e mulheres no Brasil, embora o problema seja mais profundo e amplo. “O machismo é estrutural e se reflete em todas as esferas de nossa vida. Somos 52% da população, mas ocupamos apenas 10% do Congresso Nacional. Seguimos a ganhar 30% menos que os homens nos mesmos cargos, continuamos a liderar as estatísticas de violência doméstica e feminicídio.”
A advogada lembra que as dificuldades de ser mulher no Brasil não começam na vida adulta, pois há violência doméstica, sexual e física contra crianças e adolescentes.
De acordo com o Mapa da Violência, os atendimentos a mulheres vítimas de violência sexual, física ou psicológica em unidades do Sistema Único de Saúde somam por ano 147.691 registros: 405 por dia, ou 1 a cada 4 minutos. A maior procura por serviços de saúde após casos de agressão dá-se entre adolescentes de 12 a 17 anos.
Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada estima que, no mínimo, 527 mil indivíduos são estuprados por ano no Brasil e que, desses, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. A pesquisa aponta que 89% das vítimas são do sexo feminino e, em geral, têm baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes. Em metade das ocorrências a envolver crianças há um histórico de agressões anteriores. Mais: 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima.
Também nos casos de violência sexual a vítima esbarra na dificuldade de acesso aos mecanismos legais, “pois médico, juiz, Ministério Público e delegado reproduzem o machismo”, afirma Ganzarolli. “Ainda existe um problema grave de compreensão por parte das polícias, promotores e juízes sobre o que é consentimento.”
A advogada cita a recente absolvição de Daniel Tarciso da Silva Cardoso, estudante de Medicina da USP, no começo de fevereiro. Acusado de dopar e estuprar uma estudante de Enfermagem, Cardoso é denunciado por outros seis casos de violência sexual contra alunas da USP. O juiz justificou sua decisão com base na “inconsistência das declarações da ofendida”.
Nada mesmo a comemorar.
Fonte: https://www.cartacapital.com.br/revista/942/no-dia-da-mulher-nada-a-comemorar