Entrevista do presidente do Cofen para revista Nursing

20 de novembro de 2017 por filipesoaresImprimir Imprimir


Manoel-Neri entrevista revista nursing biblioteca virtual enfermagem

Em entrevista concedida à Revista Nursing, o presidente do Cofen, Manoel Neri, explica os impactos negativos de uma restrição como esta no atendimento à população, fala da atuação, regulamentada, dos profissionais de enfermagem na Saúde Pública e da entrada do Conselho no processo, para impedir a limitação imposta pela liminar.

Revista Nursing: Quais são atualmente as atribuições regulamentadas das enfermeiras e dos enfermeiros no atendimento à população?

Manoel Neri: As atribuições desempenhadas pelos profissionais de enfermagem estão previstas igualmente na legislação que regulamenta a profissão. Em especial, as atividades do enfermeiro estão dispostas no Art. 11 da Lei 7.498/1986 e Art. 8º do Decreto 94.406/87. Em ambas, há atribuições que são privativas desse profissional, a exemplo de consulta e diagnóstico de enfermagem, cuidados de maior complexidade, coordenação, organização. A direção dos serviços de enfermagem, supervisão de técnicos e auxiliares de Enfermagem. Outras que são de sua competência no contexto da equipe de saúde. A prescrição de medicamentos previstos em programas de Saúde Pública e protocolos, realização de pré-natal e parto normal, participação na prevenção e controle das doenças transmissíveis, participação nos programas e nas atividades de assistência integral à saúde, dentre outras atividades. São diversas as atribuições previstas e consolidadas no Sistema Único de Saúde (SUS). Os enfermeiros também atuam como profissionais liberais em várias áreas da atenção à saúde e áreas inovadoras como a de Enfermagem Forense.

Nursing: Como essas atribuições são desempenhadas? O que garante a eficácia desses atendimentos?

Neri: Os enfermeiros atuam em todos os contextos relacionados à saúde. O que garante a efetividade dessas ações é a qualidade da formação do profissional, bem como a integração e articulação das equipes multidisciplinares de saúde. As diretrizes curriculares nacionais que norteiam a graduação em Enfermagem preveem uma formação ampliada, com visão holística e integral, voltada para as necessidades dos clientes, bem como para o cumprimento dos princípios que norteiam o SUS. Dentre as profissões da área da Saúde, a enfermagem possui a formação mais generalista e integrada, sendo indispensável para o sucesso das estratégias de Saúde Pública no Brasil.

Nursing: Quais atribuições foram alvo da ação do CFM? Há quanto tempo elas fazem parte do escopo de atendimento de enfermagem no Brasil?

Neri: A ação judicial afetou a requisição de exames laboratoriais e complementares por enfermeiros na Atenção Básica. Decerto pela realidade consolidada há mais de 20 anos e regulamentada pela Resolução Cofen 195/97. Além deste aspecto, no qual o CFM obteve uma vitória temporária com a decisão liminar, a ação judicial atacou também a Consulta de Enfermagem, prevista na Lei 7.498/1986 como uma das atividades privativas do enfermeiro. Na prática, é uma tentativa de ressuscitar aspectos do Ato Médico já derrotados e demolir a visão multidisciplinar que alicerça o Sistema Único de Saúde. A Estratégia de Saúde da Família, o atendimento pré-natal de baixo risco. Os programas de prevenção de controle de DST/Aids e acompanhamento de pacientes crônicos estão entre os mais afetados.

Nursing: Há outros sistemas de saúde, de outros países, nos quais as atribuições das/dos enfermeiras/-os sejam alvo de ação contrária, como está acontecendo no Brasil?

Neri: É consenso mundial que os múltiplos saberes, a visão integral, multi e interdisciplinar na área da Saúde é benéfica para os clientes em qualquer nível de assistência prestada. Há situações pontuais de divergências, alguns conflitos, mas desconheço outro contexto internacional em que as atribuições dos enfermeiros sofram com ações contrárias desta magnitude, em âmbito judicial.

Nursing: Com qual justificativa o CFM moveu a ação?

Neri: Assim que o Conselho Federal de Medicina usou como justificativa para a ação o Decreto 50.387/61, que regulamentou a Lei 2.604/55, assim como a legislação ultrapassada, substituída pela atual Lei do Exercício Profissional, que já tem mais de 30 anos e não é novidade para ninguém. Essa legislação de 1955 previa uma subordinação dos profissionais de enfermagem aos médicos. Também proibia que enfermeiros consultassem, fizessem diagnósticos e prescrevessem medicamentos em qualquer hipótese. No ordenamento jurídico atual, não há qualquer tipo de subordinação entre a profissão médica e a profissão de enfermagem. Mesmo a Lei 12.842/13, que regulamenta a medicina, não assegurou que estas atividades sejam privativas do médico, já que tais artigos foram vetados à época pela ex-presidente Dilma Rousseff. Os pressupostos alegados pelo CFM na ação estão completamente fora de contexto. Ao que me parece, visa apenas reforçar o corporativismo médico em detrimento do direito da população brasileira de ter acesso a ações e serviços de saúde desempenhados por outros profissionais, dentro dos marcos regulatórios de suas respectivas profissões.

Nursing: Por que o Cofen é contrário a essa ação?

Neri: Somos contrários à ação porque a requisição de exames por enfermeiros, a prescrição de medicamentos em programas de Saúde Pública e a Consulta de Enfermagem são prerrogativas legais dos enfermeiros, conquistadas no contexto da Lei do Exercício Profissional. Não é possível, portanto, no mundo atual, um profissional, apenas, dar conta de resolver a complexidade da atenção à saúde. O trabalho em equipes multiprofissionais e as práticas colaborativas. Além de serem uma tendência nos países mais desenvolvidos do mundo, são necessários para dar mais resolutividade aos usuários do Sistema Único de Saúde, melhorando a cobertura e o acesso às ações e serviços de saúde. Os enfermeiros não estão entrando na seara da medicina, e nem queremos. No entanto, não aceitaremos o cerceamento da nossa atividade profissional, que é desempenhada de acordo com as prerrogativas legais da profissão. A ação movida pelo CFM impõe restrições indevidas à atuação dos profissionais de enfermagem na Atenção Básica, com graves prejuízos à Saúde e à população.

Nursing: Quais os impactos para o sistema de saúde (público e privado)?. Uma mudança como esta no atendimento prestado pelas enfermeiras e pelos enfermeiros à população?

Neri: A ação do CFM atacou especificamente o Sistema Único de Saúde, dificultando sobretudo ou mesmo inviabilizando o acesso a exames essenciais e a um atendimento qualificado e completo de enfermagem. Os exames que foram temporariamente restritos aos pacientes do SUS podem ser realizados em laboratórios particulares mesmo sem qualquer prescrição de profissional de saúde. A restrição imposta pela liminar prejudicou a efetividade do atendimento na Atenção Básica . Especialmente no pré-natal com efeito de atrasar a própria confirmação da gravidez e dificultando o acesso a exames essenciais como VDRL. Em meio à epidemia de sífilis, e ao exame preventivo de câncer do colo do útero, em pleno Outubro Rosa. O atendimento feito por enfermeiras e enfermeiros em programas de saúde que atendem diabéticos e hipertensos (“hiperdia”), tuberculose, hanseníase, DST/Aids, entre outros, também foi afetado. A Confederação Nacional dos Municípios alertou sobre o risco de colapso no atendimento dos Postos de Saúde. Os prejuízos à assistência foram apontados também pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS).

Nursing: Como o Cofen procedeu diante da ação?

Neri: O Cofen atuou ativamente na esfera judicial, além de emitir notas técnicas, comunicados e articular as entidades que atuam na Atenção Básica, onde foram evidentes os prejuízos da suspensão da requisição de exames por enfermeiros. A 20ª Vara Federal Cível do Distrito Federal deferiu o pedido de ingresso do Cofen no processo judicial movido pelo CFM contra a União Federal. Apresentamos pedido de reconsideração da liminar. Negada pelo juiz. Como a ação foi contra a União Federal, a Advocacia Geral da União (AGU) protocolou em 17/10/2017 um pedido de suspensão da liminar junto ao Tribunal Regional Federal. Com efeito da gravidade da situação e da grave lesão à Saúde Pública. No dia 18/10, o presidente do TRF1 derrubou a liminar até julgamento do mérito. O Sistema Cofen/ Conselhos Regionais de Enfermagem articulou em vários estados audiências públicas nas casas legislativas, promovendo atos públicos e manifestações de rua em defesa do SUS e da atuação dos enfermeiros na Atenção Básica. Esta mobilização teve amplo apoio da população brasileira.

Nursing: Por que se fala em corporativismo médico?

Neri: Fala-se em corporativismo médico porque não há nenhuma justificativa científica, técnica ou legal minimamente plausível para esta ação judicial. Ao passo que afirma não são apenas o Cofen e entidades ligadas à profissão. Além do próprio Ministério da Saúde, a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), a ENSP/Fiocruz. O Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (CONASS). Já se manifestaram sobre os prejuízos assistenciais provocados por esta ação desarrazoada dos dirigentes do CFM. Ao que parece, o CFM está muito preocupado em estabelecer uma reserva de mercado para a atuação dos médicos, postura que é incompatível com os princípios e diretrizes do SUS e da Política Nacional de Atenção Básica.

Nursing: O Cofen acredita que a decisão do Presidente do TRF1 será mantida no mérito?

Neri: O Cofen está confiante que venceremos o mérito desta ação, já que os pressupostos legais para concessão da tutela antecipada basearam-se na antiga Lei do Exercício Profissional, que já foi superada. O Cofen atuará com firmeza em conjunto com a AGU para, no julgamento de mérito dessa ação, garantir o direito à saúde aos usuários do SUS.

Fonte: [1]

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