Oferece subsídios históricos, teóricos e práticos com algumas categorias operacionais para que o enfermeiro possa ter recursos e instrumentos para uma atuação profissional que reduza as iniquidades em saúde da população negra.
O Ministério da Saúde adverte: o racismo faz mal à Saúde. Essa exclamação presente no documento Painel de Indicadores do Sistema Único de Saúde (SUS) de 2016, cuja temática central era Saúde da população negra, reconhece os efeitos deletérios do racismo na saúde de pessoas negras.
Segundo o Estatuto da Igualdade Racial, a população negra corresponde ao “conjunto de pessoas que se autodeclaram pretas e pardas, conforme o quesito cor ou raça usado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)” e que somam, no Brasil, mais de 56% da população brasileira.
É fundamental compreender que o fato de pessoas pretas e pardas compartilharem semelhanças em relação aos impactos do racismo, quando comparadas às pessoas brancas, justifica a junção das pessoas pardas no grupo de pessoas negras.
Vale destacar ainda que a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012-2018 indicou aumento dos percentuais de autodeclaração de pessoas negras nos últimos anos, com destaque para o grupo de pessoas pretas.
Tal cenário, embora indique mudanças, ainda exige uma radicalidade na compreensão da negritude, bem como no enfrentamento ao racismo, entendido como um sistema opressor organizado que atua em diferentes níveis perpassando “individualidades, vontades ou opiniões, fixando-se internamente aos mecanismos de sociabilidade e grupalização”, atualizando-se.
Dito de outra forma, a estratégia de poder, presente nos diferentes espaços e relações sociais e que resulta no subjugamento de algumas pessoas (negras) em detrimento de outras (não negras), deve ser compreendida em suas diversas manifestações, das mais sutis até as mais explícitas. Esse é um dos motivos do menor acesso da população negra aos serviços e recursos em saúde e, consequentemente, piores quadros, em comparação com a população branca, no que se refere aos índices de morbimortalidade.
Segundo Werneck, o racismo tem efeitos deletérios sobre a saúde da população negra ao naturalizar a inferiorização pela diferença e impor uma assistência em saúde desigual. Além disso, por sua abrangência e seu potencial discriminatório, ele penetra diferentes níveis da vida humana, promovendo a destituição dos direitos civis dessa população.
Por isso, uma atuação profissional que não se apropria da compreensão desse sistema assenta sua prática em um campo político-ideológico que reproduz a desvalorização da vida.
Nesse sentido, dedicaremos algumas linhas para apresentar as dimensões do racismo propostas por Jones e citadas por Werneck, cujo modelo nos ajuda a compreender os aspectos pessoais, interpessoais e institucionais do racismo.
Essas três dimensões do racismo, Werneck adverte, interagem entre si na produção dos efeitos individuais e coletivos, não exclusivos às vítimas do racismo, e participam de processos e políticas institucionais.
Conforme é apresentado na figura, a perspectiva pessoal ou internalizada do racismo corresponde a sentimentos e condutas introjetados, cuja postura de aceitação dos padrões racistas é incorporada e naturalizada pelas pessoas que sofrem seus efeitos.
A dimensão interpessoal refere-se às ações ou omissões que traduzem preconceitos ou discriminação por meio de condutas intencionais ou não entre as pessoas.
Por último, a dimensão institucional do racismo, ou racismo sistêmico, contempla aspectos materiais e de acesso ao poder, culminando em tratamento e resultado desiguais. É uma forma estrutural do racismo, cujas organizações, políticas, práticas e normas promovem uma espécie de “exclusão seletiva dos grupos racialmente subordinados, atuando como alavanca importante da exclusão diferenciada de diferentes sujeitos nesses grupos”.
Considerando que a população negra é a que mais acumula piores índices de saúde, educação, saneamento básico e acesso aos bens e serviços públicos para satisfação das suas necessidades, cabe à enfermagem o uso de suas atribuições para a redução das assimetrias em saúde com vistas à concretização do cuidado sob uma perspectiva ética.
O racismo é um fenômeno cuja dinâmica é atualizada ao longo do tempo nas estruturas da sociedade. Os significados que ele reproduz incidem sobre o tratamento dado aos grupos raciais, influenciando os acessos e as oportunidades. Dessa forma, o racismo cria e/ou potencializa as vulnerabilidades, impondo barreiras de acesso a direitos ou negligenciando necessidades.
O racismo, como um dos elementos constituintes da complexidade e dinamicidade que determinam o processo saúde e doença convoca profissionais de saúde a uma abordagem que transcenda as barreiras do paradigma biomédico e caminhe, de forma crítica e reflexiva, na direção de uma prática fundamentada em evidências científicas e contextuais sobre a saúde e vida da população negra.
Isso implica considerar que as diferentes vulnerabilidades que são impostas a essas pessoas são produções de um sistema excludente e opressor sobre o qual a enfermagem tem um papel relevante, sobretudo se atuar no planejamento de ações programáticas que respeitem as diferenças e contemplem a compreensão dos efeitos do racismo articulado às interseções entre classe, gênero, região, deficiências, religião, geração, entre outras categorias que são coparticipantes desse sistema de produção da vulnerabilidade programática.
Nesse sentido, para uma atuação resolutiva de enfermagem, defendemos que são necessários aprofundamentos sobre as dimensões do racismo e como ele se estrutura, manifesta e permeia as relações pessoais (corpos e subjetividades) e coletivas. Isso implica perceber práticas do racismo na execução e planejamento dos processos de trabalho, os quais não estão isentos desse fenômeno construído social e historicamente.
Sendo assim, este capítulo visa oferecer subsídios históricos, teóricos e práticos com algumas categorias operacionais para que a/o enfermeira/o possa ter recursos e instrumentos para uma atuação profissional que reduza as iniquidades em saúde da população negra.