O novo coronavírus desembarcou em terras nacionais em um momento de fragilidade política, econômica e social que contribui para piorar um cenário que já seria naturalmente complicado.
A pandemia da covid-19 chegou ao Brasil num péssimo momento. Qualquer um seria ruim, evidentemente, mas ela desembarcou aqui num momento de confusão e desagregação política, fragilidade econômica e carências sociais historicamente acumuladas. O potencial infeccioso e mortal dessa doença desconhecida exigia que o país a enfrentasse sob o comando de uma liderança firme, clara, decidida. Que orientasse, e até mesmo guiasse, a sociedade na travessia do deserto que se vislumbrava à frente.
O primeiro sinal já foi desanimador. Ainda no início de fevereiro, o governo brasileiro hesitou em enviar aviões para resgatar brasileiros em Wuhan, na China, origem da pandemia. Alegando que seria uma operação muito cara felizmente, enviou. O sofrimento pelo qual passaram, antes de nós, a China, a Itália, Espanha e os Estados Unidos só para citar alguns países apontaram caminhos a serem seguidos no combate à covid-19. Especialmente em relação ao isolamento social. Mas não foram observados e absorvidos, a não ser isoladamente pelo Ministério da Saúde, e a oportunidade de nos precavermos por antecipação foi jogada pela janela.
O fato é que tudo degringolou, com o presidente da República desdenhando da gravidade da pandemia. Desautorizando as orientações emanadas do seu próprio Ministério da Saúde, entrando em guerra com os governadores que tentaram conter o avanço da doença, e o Ministério da Economia, de tendência liberal. Embora resistindo e demorando para colocar recursos à disposição de empresas e trabalhadores e da população em geral para preservar, pelo menos, os sinais vitais da economia. Resultado: já alcançamos a marca de um milhão de brasileiros infectados, ultrapassamos os 49 mil mortos e o Produto Interno Bruto desliza perigosamente para uma queda que aponta para 10% em 2020.
O presidente Jair Bolsonaro insistiu desde o princípio que a pandemia não passava de uma “gripezinha”, que a morte é um fato inevitável da vida. Participou de manifestações políticas sem máscaras e distanciamentos recomendados para todos os brasileiros e concentra todas as suas energias apenas na permanente disputa política que envolve o seu governo, o congresso. O sistema judiciário e a sociedade. Sua postura mina e combate a orientação de médicos e cientistas e governadores de que o isolamento é a melhor arma no momento para combater o alastramento do vírus e estimula parcela considerável dos brasileiros a não cumpri-lo e a se arriscarem nas ruas e nos locais de trabalho e públicos, especialmente o transporte coletivo.
É compreensível que a parcela da população cuja renda depende de atividades diárias, especialmente os trabalhadores informais e as empresas produtivas e de serviço, que só dependem da presença física de sua clientela para operar, se sintam prejudicadas pela política de isolamento e estejam angustiadas para gerar caixa. Até mesmo as grandes empresas, com maior lastro financeiro, sofrem ao operar abaixo de sua capacidade de produção e comercialização, mesmo, entre estas, as que têm canais de venda digitais. É de se esperar que almejem que tudo volte ao normal rapidamente. A questão é que esse rapidamente, esse retorno precoce, pode gerar um aumento na taxa de contaminação na população cujas consequências ainda são imprevisíveis.
Esse sufoco seria menor, em parte evitável, se o governo, principalmente o Ministério da Economia, irrigasse a economia com recursos que azeitassem o seu funcionamento em patamares pelo menos de sobrevivência. Portanto este deveria ser o papel de um Estado que compreendesse e aceitasse sua função de estimulador da atividade econômica em momentos de grave crise. Não é o caso do Ministério da Economia dirigido por Paulo Guedes, de orientação liberal e preocupado.
Acima de tudo, com o desequilíbrio fiscal sensível que herdou de governos anteriores. Claro, o governo ofereceu recursos às empresas e à população. Mas insuficientes, boa parte dos quais ficou empoçado nos bancos, eternamente preocupados com a inadimplência, e chegaram à ponta, a quem deveria recebê-los, lentamente, quando chegaram. Numa crise como a atual. Contudo um governo deveria fazer um balanço entre o que é mais importante e urgente para a sociedade e o que é administrável com políticas de longo prazo. O equilíbrio fiscal ou o combate à Covid-19?
Como efeitos colaterais graves, é preciso registrar o desmonte do Ministério da Saúde. Órgão gestor e gerador de imprescindíveis políticas públicas. Especialmente do SUS, que é o sustentáculo do atual combate à pandemia, de norte a sul do Brasil. Portanto qual a perspectiva de reconstrução desse órgão vital para a saúde pública no Brasil quando os especialistas da área foram afastados e não há sinais de que profissionais do ramo voltem a ter espaço em seus quadros, especialmente os diretivos?
At last but not at least, o que será da educação e da ciência no Brasil? Não foi a covid-19 que instalou uma séria crise na educação brasileira. Ela vem de antes, graças à desimportância que o atual governo dá ao tema, vital para o futuro do país. Os recentes titulares do Ministério da Educação não tinham qualquer intimidade com o tema e se guiavam por dogmas ideológicos retrógrados. Não há perspectiva de melhora.
Nestes tempos de covid-19, o isolamento aconselhava pesados investimentos num sistema de aulas à distância nos ensinos fundamental e médio. Cujo alunato, em sua maioria, é carente de recursos tecnológicos eficientes para acompanhá-lo. Não foi feito com a necessária abrangência, até porque é uma tarefa de grande porte num país com as dimensões do Brasil. Haverá sérias lacunas a preencher quando as aulas forem retomadas.
O esforço e a eficiência das Universidades, especialmente as públicas, na promoção de pesquisas sobre medicamentos, terapias, equipamentos para o combate à covid-19. Deu-lhes uma notoriedade ímpar diante da sociedade brasileira, evidenciando sua importância para a ciência brasileira e o desenvolvimento do país. Parte significativa delas, entre elas a USP. Mobilizou seus recursos para o ensino à distância para que a formação dos quadros que dirigirão o país no futuro prosseguisse com o mínimo de prejuízo no momento. Mas dos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia não emanou qualquer orientação.
A retomada da vida normal na sociedade brasileira no período pós-pandemia, que não se sabe, ainda, quando e como se dará. É profundamente desafiador, exigirá um grande esforço de reconstrução e renovação em todas as áreas da vida da sociedade. Aprendemos com os acertos e erros cometidos neste período tão perturbador? Sairemos melhor do outro lado?