É enganosa a tese de que novo piso provocará fechamento de leitos e onda de demissões.
A enfermagem é a maior força de trabalho da saúde, representa aproximadamente 50% das equipes dedicadas a atender e cuidar dos pacientes. Pelo trabalho realizado na pandemia e na vacinação contra a covid-19, a categoria ganhou protagonismo, notoriedade e o respeito da população. Essa visibilidade trouxe à tona os salários miseráveis que são pagos a essas trabalhadoras e trabalhadores, em contraste com os lucros exorbitantes dos donos de hospitais e planos de saúde.
Diante da realidade exposta, a sociedade exigiu que o Congresso Nacional ouvisse a categoria e discutisse a criação de um piso salarial para erradicar os salários dignos de fome que são praticados em todo o país. Após as equipes técnicas das duas Casas confirmarem a legalidade e a viabilidade econômica da matéria, em um raro momento de entendimento entre a base do governo e a oposição, o projeto foi aprovado por unanimidade no Senado e por 97% dos deputados.
Da mesma forma, a equipe técnica do Palácio do Planalto confirmou a legalidade e constitucionalidade do projeto, de modo que o texto veio a ser sancionado pela Presidência da República no dia 4 de agosto de 2022 (lei 14.434/22). O que era para ser motivo de comemoração, logo se tornou um pesadelo. Não tardou para que a confederação que representa os bilionários da saúde contratasse um grande escritório de advocacia e entrasse com uma ação de inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF).
Chamadas a opinar, as assessorias jurídicas da Câmara, do Senado, da Presidência da República e a Advocacia-Geral da União (AGU) já se manifestaram pela constitucionalidade do piso e pela rejeição dos pedidos de impugnação. Não obstante, mesmo antes de qualquer manifestação ou de uma decisão liminar da Suprema Corte, adversários da enfermagem moveram uma máquina de comunicação poderosa para espalhar fake news sobre o assunto nas redes sociais, se utilizando de dados duvidosos e da imagem de hospitais filantrópicos para ameaçar a sociedade com demissões e fechamento de leitos.
A verdade é que além de constitucional, o piso é economicamente viável e vai trazer desenvolvimento ao país. Para se ter uma ideia, segundo estudo da Câmara dos Deputados, o custo anual para cumprir a lei e erradicar os salários miseráveis na enfermagem representa somente 2,7% do PIB da Saúde, 4% do orçamento do SUS, 2% de acréscimo na massa salarial dos contratantes e, pasmem, míseros 4,8% do faturamento dos planos de saúde em 2020.
Entre os 315 bilionários brasileiros, 9 operam no ramo da saúde e oito ficaram muito mais ricos ainda desde o início da pandemia, segundo levantamento da Revista Forbes. Para ficar em apenas dois exemplos, podemos citar que o patrimônio do fundador da Rede D’Or saltou de US$ 2 bilhões, em 2020, para US$ 11,3 bilhões, em 2021. A fundadora da operadora de planos de saúde Amil, por sua vez, viu sua fortuna saltar de US$ 3,5 bilhões, em 2020, para US$ 6 bilhões, em 2021. Da mesma sorte, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicam que o lucro líquido per capita dos planos de saúde mais que dobrou em quatro anos, saltando de R$ 75,70, em 2014, para R$ 185,80, em 2018.
Diante desses números, que são reproduzidos em escala por todo o mercado, é justo que técnicos de enfermagem recebam R$ 900 por 176 horas de trabalho mensal? É justo que enfermeiros, profissionais de nível superior e que exercem funções de responsabilidade extrema recebam R$ 1.200 por mês de trabalho? É isso o que está acontecendo, enquanto donos de hospitais e planos de saúde registram lucros bilionários e cada vez mais aviltantes.
É enganoso arguir a tese de que a enfermagem vai ser responsável pelo fechamento de leitos, de hospitais e ameaçar a profissão com uma onda de demissões, uma vez que todo mundo sabe que o mercado da saúde já contrata só o número mínimo de profissionais e não pode prescindir de nenhum de seus quadros. Não se deixem enganar: nenhum hospital será fechado por este motivo, e o ambiente da saúde ficará mais saudável, com justiça social e reconhecimento àqueles que fazem o sistema verdadeiramente funcionar.
Durante a pandemia, a enfermagem brasileira cuidou de 34 milhões de pacientes infectados pela Covid-19, aplicou 519 milhões de doses de vacinas contra a doença e deu conforto para 680 mil pacientes que foram a óbito e seus familiares. Infelizmente, 680 profissionais perderam a vida na linha de frente. Mas o trabalho da categoria não começa na pandemia. Desde Anna Nery, em 1864, até o advento do Sistema Único de Saúde (SUS), a enfermagem está na linha de frente trabalhando para cuidar das pessoas, tratar doenças, reduzir mortes e promover a saúde. Portanto, é necessário reconhecer esse papel.
Afinal, a quem interessa sucatear a enfermagem? A quem interessa negar um salário justo a essa categoria? Enfim, apenas aqueles que vão ganhar com a exploração máxima dessa força de trabalho. Por outro lado, a sociedade é majoritariamente a favor, pois entende que é justo e necessário erradicar os salários miseráveis que são pagos a quem exerce a ciência do cuidado.
Por Betânia Santos
Presidente do Conselho Federal de Enfermagem (Cofen)